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Saiam todas!

por Diana Assunção e Natália Viskov

 

1968. 198 operárias numa Ford de 5 mil operários decidem iniciar uma mobilização por equiparação salarial entre homens e mulheres. Baseado em uma história real, é este o tema central do filme “Revolução em Dagenham” [1], do diretor Nigel Cole, que já vem de produções com temas controversos como “O barato de Grace” e “Garotas do Calendário”. Neste filme, muitos temas que dizem respeito a luta das mulheres trabalhadoras são tratados de forma bastante frontal e categórica.

Ainda que com certa romantização das operárias, o filme começa demonstrando o quão poderosa é a indústria Ford no mundo inteiro, e o cotidiano das trabalhadoras que tem como ofício a costura dos bancos dos carros da Ford e que a cada vez que aparece um homem na porta da oficina gritam “Atenção, homem à vista!” e voltam a vestir suas blusas, retiradas por conta do calor e das evidentes péssimas condições de trabalho – questão tratada secundariamente, como um aspecto “cômico” e não de denúncia.

Nos 10 primeiros minutos de filme, um senhor adentra a oficina e diz às operárias que elas deverão decidir se farão ou não uma paralisação. O conflito se inicia porque o argumento da empresa para não aumentar os salários das trabalhadoras era de que elas não eram qualificadas [2]. Este senhor é ligado ao Sindicato que as representa, e desde o começo expressa sua sincera preocupação com a conquista das reivindicações das trabalhadoras – ainda que por fora de uma estratégia clara. Elas decidem em assembléia, com votação, a ida de uma comissão para discutir com os empresários da Ford. É neste momento que se apresenta a “líder” sindical do filme.

De forma bastante impressionante o filme vai demonstrando “quem é quem”. O senhor que esteve na assembléia é ligado a um “Partido Comunista”, mostrando-se como ala esquerda no Sindicato, mas adaptado ao mesmo e aplicando conceitos marxistas de forma abstrata. O principal dirigente do Sindicato é claramente um agente da patronal que busca impedir a paralisação – que seria a primeira na história – das mulheres operárias da Ford. Os empresários da Ford não querem atender as reivindicações das trabalhadoras e seguem sustentando que elas não têm qualificação. A trabalhadora eleita em assembléia para ir à reunião, Rita O’Grady, que anteriormente tinha sido orientada pelo Sindicato pra “concordar com tudo que eles falassem” acabou passando por cima da burocracia e dizendo à Ford que se não houvesse aumento salarial haveria a paralisação das mulheres.

Rita volta pra oficina, sobe em uma cadeira e diz “Saiam todas!”. Inicia-se a primeira paralisação. Elas eram poucas, e eram mulheres. Carregando faixas em frente à fábrica, rapidamente perceberam que não estavam causando nenhum impacto. Mas felizes com o fato de terem dado um passo adiante, terminaram o dia e voltaram a trabalhar normalmente. Quando a empresa solta um comunicado dizendo que haveria desconto de salários pela paralisação, Rita toma a linha de frente, enfurecendo-se, e, ao lembrar de uma conversa com o militante do Partido Comunista – onde este dizia que o problema não era aumento de salários, o problema era a equiparação salarial entre homens e mulheres – Rita faz talvez a fala mais inspirada do filme, onde chama as trabalhadoras a rechaçarem a empresa e fazerem uma greve até conseguirem a equiparação com os homens.

Estas mulheres, numa Ford em Dagenham, começam a gerar um enorme problema para a Ford. Vemos os empresários enlouquecidos gritando “O quê? Se equipararmos em Dagenham, teremos que equiparar na Ford no mundo inteiro, e depois em todas as outras fábricas. Vai ser o fim!”, demonstrando como as justas reivindicações das mulheres tocam em pontos nevrálgicos do sistema capitalista, colocando em xeque as suas contradições. O filme aí toma novo fôlego, com Rita se tornando uma figura nacionalmente conhecida e avançando enquanto dirigente sindical. Da tímida manifestação na porta da fábrica em Dagenham, as mulheres começaram a percorrer todas as fábricas da Ford na Inglaterra chamando as operárias a paralisarem. Vale também ressaltar a relação que Rita estabelece por acaso com a esposa de um dos empresários da Ford, uma bela e culta mulher que vê em Rita a realização das vontades de libertação feminina que lhe foram aprisionadas na vida como uma resignada esposa burguesa.

Neste momento, a greve das operárias chega a um impasse. A falta da costura dos bancos impede que a fábrica continue a funcionar. Os homens não vão mais pra fábrica, e a empresa começa a fazer uma campanha para colocar homens contra mulheres – questão que historicamente ocorreu muitas vezes, com a idéia de que as mulheres não podem se organizar sindicalmente ou que rebaixam o salário dos homens. Enquanto tudo isso ocorre, o filme demonstra outra relação sendo questionada a partir da luta das mulheres: a divisão do trabalho “doméstico” dentro da casa de Rita. Se antes, quando era “apenas uma operária” as tarefas domésticas eram a ela relegadas, com sua entrada na cena política, o marido de Rita, operário da mesma Ford, passa a ter de garantir todas as tarefas domésticas de forma bem atrapalhada, enquanto sua mulher se converte na principal liderança da greve, sem tempo para fazer comida, lavar roupa ou cuidar das crianças. O interessante é que Rita, ao se enxergar enquanto sujeito político transformado a partir da greve, passa a questionar também o trabalho doméstico (não remunerado) e sua relação com o marido, quando esse diz que ela não tinha do que reclamar já que “ele era bom, não batia nela” e ela responde que nada tem a agradecer, já que “não bater” é o mínimo que ele podia fazer, e desta forma consegue que seu marido se questionasse e passasse a apoiar a luta de Rita e das mulheres da fábrica, passando também a buscar estreitar laços de companheirismo entre eles.

Outro aspecto marcante do filme é a solidariedade entre as mulheres e a forma como isso se aprofunda a partir da luta comum que levam adiante. Uma das operárias tem seu marido em profunda depressão causada pelo trauma de ter participado das trincheiras da 2ª Guerra Mundial, e é na luta da fábrica e em sua amiga Rita que ela encontra forças para lidar com esta situação. Também é na greve e na força das mulheres que se mostra o caminho para uma saída “não individual” dos problemas do capitalismo. O filme ilustra isso muito bem quando a mais jovem das operárias, que sonha em “se realizar enquanto mulher” sendo uma famosa modelo, não cede à tentativa de cooptação por parte da patronal, recusando fazer um ensaio fotográfico na fábrica.

Com um tema bastante atual, já que no mundo inteiro ainda há enormes índices de diferenciação salarial entre homens e mulheres, e particularmente depois da década de 1970 com o fenômeno de flexibilização e precarização das condições de trabalho que relegam às mulheres os piores salários e postos, o filme de Nigel Cole toca, ainda que por vezes superficialmente, em temas como burocracia sindical, sindicatos, democracia operária, cooptação e opressão às mulheres como já algum tempo não víamos – talvez desde os inspirados filmes de Ken Loach. Uma de suas semelhanças de Cole com Loach é também isolar os temas de seu contexto histórico, e aqui no caso das operárias de Dagenham, o diretor acaba pecando por perder o rico processo que ocorria na Europa, sobretudo na França, em 1968. Aqui inquestionavelmente podemos dizer que a “questão da mulher” avança em conjunto com o ascenso da luta de classes internacionalmente, e justamente por isso seria uma importante contribuição localizar o processo de Dagenham como um marco da luta das mulheres em toda a Europa.

Como não poderia deixar de ser, a entrada em cena da Primeira Ministra inglesa, comovida com a luta das mulheres, acaba servindo para consolidar a vitória da greve como “conciliação de classes”, tentando aparecer ao final como heroína junto às trabalhadoras, e neste sentido buscando apagar a importância da organização desde a base, dos métodos da classe operária, da luta independente. Ainda assim, num momento em que a burguesia segue tentando descarregar sobre as costas dos trabalhadores a sua crise capitalista, um filme como “Revolução em Dagenham” rompe um pouco o conto de fadas de Hollywood e os filmes “água com açúcar” europeus, mostrando de forma divertida, ainda que com várias limitações, o processo de organização operária de mulheres trabalhadoras em plena década de 60.

Este pequeno exemplo em Dagenham demonstra o poder que podem ter as mulheres trabalhadoras quando se organizam, e o buscam fazer em aliança com os trabalhadores. Como dizia Marx, citado no próprio filme, “uma sociedade pode ser medida pela forma como trata as mulheres”, e para alcançar isso é necessário que desde as bases, as mulheres se organizem de forma independente da burguesia e dos governos, primando pela independência de classe, pela mais ampla democracia operária e buscando se aliar a outros setores explorados e oprimidos da sociedade, para que suas lutas não sejam cooptadas pelos patrões ou pelo governo, mas que se transformem em propulsores da verdadeira luta pela emancipação das mulheres, que é a luta pela transformação radical da sociedade capitalista através da revolução socialista – o que só pode se dar com uma atuação nos sindicatos que seja uma tática a serviço da estratégia revolucionária pela tomada do poder.

Diana Assunção é diretora do Sindicato de Trabalhadores da USP e dirigente da LER-QI. Natália Viskov é estudante do curso de Letras da USP, militante da LER-QI e do Bloco Anel às Ruas.

 

[1] O filme originalmente tem como título “Made in Dagenham”, que em sua tradução literal significa “Feito em Dagenham”. Vale a pena refletir sobre o uso da palavra “revolução” na tradução oficial, que pode expressar a volta da idéia de “revolução” ao imaginário das massas (o que inevitavelmente se remete aos enormes processos no mundo árabe), mas que também pode expressar a apropriação da idéia de “revolução” não em sua forma clássica mas enquanto revolta, rebelião, greve, e etc – muitas vezes com a burguesia e a mídia, assim como a indústria cinematográfica, se apropriando deste conceito.

 

[2] O Brasil viverá processo semelhante em relação ao trabalho feminino e o questionamento em relação a sua qualificação. Mais de 10 anos depois, durante os anos 1970, as operárias brasileiras também lutarão pela equiparação salarial. Para saber mais leia o capítulo “Mulheres no ascenso operário de 1978 a 1980” do livro “Lutadoras – Histórias de mulheres que fizeram história”.

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